quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Literatura contemporânea e Universidade no Brasil


A produção artística influencia e é influenciada por sua recepção. O público, os meios de divulgação, a crítica, os concursos, festivais e mostras compõem o contexto artístico com o qual toda obra se relaciona, desde sua concepção até sua publicização. Alguém escreve para alguém num contexto imaginado, projetado, inventado. Se isto for verdade, então uma reflexão sobre o contexto de produção e consumo da literatura hoje no Brasil pode ajudar a explicar sua diversidade e qualidade muito aquém do esperado para um país deste tamanho e potencial. Ainda que as posições sobre a literatura contemporânea variem entre mais ou menos otimistas, não se vê, salvo engano, ninguém celebrando a produção nacional em comparação, por exemplo, com grandes autores brasileiros do passado ou mesmo com autores contemporâneos de grande recepção internacional. Muito disso se explica pela relação dos jovens aspirantes a escritor com as instituições responsáveis pela divulgação literária. Os jovens escritores brasileiros vão se perdendo pelo caminho com a falta de bibliotecas nas periferias e nas escolas públicas (65% das escolas não têm biblioteca). No colégio, em geral, são traumatizados por professores cansados que tentam, ainda sob o recém falecido imperativo literário do vestibular, enfiar grandes romances do século XIX goela abaixo de alunos que leem pouco e mal, sem contexto histórico e artístico que lhes permita minimamente relacionar aquela produção com suas próprias instigações de adolescente. Os escritores em potencial que sobrevivem ao colégio se veem logo em seguida diante da máquina de moer gente chamada mercado e muitos, numa tentativa desesperada de sobreviver a partir da escrita, vão buscar refúgio no jornalismo, na propaganda e no marketing, onde se pode supostamente ser criativo ganhando dinheiro. Há aqueles também que se decidem pelo magistério em Letras, achando que o beletrismo e o contexto literário universitário fortalecerão sua produção futura. A verdade, infelizmente, é que aqui os poetas se tornam poetas não através, mas apesar das instituições de promoção literária, incluindo a universidade.
A universidade pública no Brasil (com a privada a questão é outra) ao mesmo tempo em que é um refúgio, um espaço de resistência para o pensamento minimamente autônomo em relação ao mercado e aos grupos políticos dominantes, também, graças a este exclusivismo, acaba se isolando da sociedade, principalmente das camadas mais pobres. A palavra “elitista”, no seu duplo sentido, a descreve bem: um centro de excelência e um centro de poucos (sem garantia de que estes poucos sejam justamente os “excelentes”, já que não há comparação possível com quem fica do lado de fora). A tarefa seria, portanto, tentar ampliar seu contato com a sociedade sem abrir mão da autonomia que ela se esforça em manter. A literatura contemporânea, em grande parte dependente desta universidade, acaba por repetir o mesmo movimento: se esforça para criar algo fora da lógica exclusiva do mercado, mas ao fazê-lo fica refém do debate exclusivista dos especialistas. A literatura necessita da tradição, assim como necessita da renovação. Cultura é tradição que respira. Mas parece que entre nós o ar está viciado, aprisionado em um círculo fechado: universidade de elite - editora de elite - escritor/leitor de elite. Professores poetas criticados por professores críticos e selecionados para publicação por professores editores. Às vezes, um único encarnando dois ou três destes papéis. Os leitores desta produção em geral também são ex-alunos de ensino superior, muito provavelmente da área de humanas, ou então, membros de pequena elites econômicas ilustradas, já em extinção nas grandes cidades. A melhora da quantidade e qualidade da literatura brasileira, parece, passará necessariamente pela abertura deste círculo. Para exagerar: no contexto universitário literário brasileiro, o analista tem muitas vezes se dedicado a descrever o fenômeno que ele mesmo produz. Este problema epistemológico, ainda que acompanhe as ciências (o instrumento capta o que ele foi construído para capturar, ou seja, o laboratório de alguma forma também produz seu objeto de análise, ao invés de analisar o objeto exterior "em si") aparece no contexto de análise literária contemporânea quase como autoanálise, ao invés de crítica. A literatura mais celebrada é aquela mais voltada às questões teóricas, formais ou temáticas de dentro da universidade: poemas benjaminianos, derridadianos, concretistas tardios e por aí vai. Evidentemente que entender as limitações deste contexto de produção e recepção não significa ignorar a importância e a qualidade das contribuições de professores escritores como Marcos Siscar ou Silviano Santiago, para ficar em um exemplo de poesia e outro de prosa. Eu mesmo, que escrevo neste blog, sou poeta, faço doutorado e pretendo me tornar professor universitário em uma universidade pública. Não se trata de separar as esferas, mas de diversificá-las.
Ironicamente, ao mesmo tempo em que grandes editoras, universidades e escritores mantêm uma relação íntima, em poucos lugares do Brasil se é mais desestimulado a escrever literatura do que na universidade. São poucos os cursos de Letras que contam com aulas e professores de escrita criativa, por exemplo. A recepção que geralmente recebe o ousado estudante que apresenta seus versos para professores ou colegas é um mais ou menos educado: desista. Escrever, principalmente nas universidades mais tradicionais, parece ser coisa de gente grande, já morta, com sobrenome estrangeiro ou doutorado. Mas se a literatura mais institucional parece se isolar dentro deste círculo é verdade que também existem outros círculos, mais ou menos abertos, em que se produz e recebe literatura, especialmente poesia e especialmente poesia falada: os saraus. (As revistas e blogues na internet, além de estarem ainda muito próximos do círculo universitário, têm outra dinâmica, que mereceria um texto à parte). Uma das cenas literárias mais vivas, por exemplo, na cidade de São Paulo são os saraus periféricos que têm como principal característica a diversidade, tanto de matrizes culturais, como da origem social mesmo dos escritores. É significativo que estas cenas, que são talvez as mais vivas hoje na cidade, devam muito pouco à universidade ou às grandes editoras. É das manifestações culturais subalternas que vêm as poetas, suas tradições de ritmo e rima, seus temas - é mais Mano Brown do que Manuel Bandeira, por assim dizer. Mas apesar da riqueza que em certas noites se encontra, tampouco este ambiente consegue se alastrar para a sociedade mais ampla (o monopólio cultural e o preconceito, geralmente de visada eurocêntrica, são os maiores empecilhos). Talvez fosse o caso, então, de intensificar a troca, ainda limitada, entre as cenas. Não se trata de institucionalizar o que não é - e talvez não queira ser - institucional, mas de intensificar o encontro entre as obras, os autores e os espaços. Mobilizar os ouvidos e os recursos, tanto literários quanto materiais, para outros tipos de produção que não aquela ligada imediatamente ao seu próprio contexto. Que a cena periférica sinta abertura de também se mover para além do seu círculo limitado e imediato, e que possa também se beneficiar do acúmulo cultural da academia que lhe diz, sim, respeito. Mano Brown e Manuel Bandeira, cada um numa tradição, numa especificidade que não se perca ou hierarquize no diálogo. Este diálogo que subterraneamente, através do repente no caso dos dois, por exemplo, sempre esteve lá.