terça-feira, 31 de maio de 2016

Alien e aborto

Sigourney Weaver no papel da Tenente Ellen Ripley e o gato Jones

O primeiro filme da saga Alien (1979), dirigido por Ridley Scott, permanece um clássico e uma referência fundamental dos filmes que lidam com o extraterrestre e o terror causado nos terráqueos. O primeiro filme, assim como os outros da saga ampliada, é uma junção de elementos de gêneros distintos como o terror, a ficção científica e a história de monstro. O clima da trama é construído como em uma sinfonia romântica: movimentos longos, com uma ambientação bem construída, que culmina apenas depois de ser preparada e ter o tema anunciado duas ou três vezes. Não atinge o espectador tanto pelo golpe do susto, mas por sua longuíssima espera. Além das inovações técnicas nos efeitos especiais, maquiagem e montagem, o filme inovou ao ter uma protagonista mulher que não é salva do monstro por um herói, mas que é ela mesma a heroína. A inserção bem formulada desta mulher causa uma transformação interessante na relação tradicional do herói com o monstro: a da mera aniquilação (basta pensar em Godzilla, Pacific Rim, Independence Day e tantos outros). Ele não é mais apenas algo a ser abatido ou algo de que se tem que escapar, mas estabelece com ela, durante a saga, relações íntimas possibilitadas principalmente por seu ser mulher. (No Frankenstein ou o Prometeu Moderno de Mary Shelley, por acaso ou não, o monstro também não é apenas alteridade a ser abatida). Neste e em outros filmes da série (que têm valor estético extremamente variado), há uma profusão de temas e referências à maternidade e à reprodução da vida que talvez exigisse mais atenção: da constante ameaça à vida que representam as criaturas, passando pelo desejo intransigente de sobrevivência da protagonista, pelo modo de reprodução das próprias criaturas, até a busca pela origem da vida e sua relação intrínseca com a morte, como é o caso em Prometeus (2012).
Nos filmes, a origem das criaturas é desconhecida e seu aspecto pegajoso e quase de inseto fazem deles monstros estranhos, distantes da experiência humana. Mesmo assim, algo parece aproximá-los, excessivamente. Há uma estranha intimidade entre o alien e o humano que nesta série é mediada pelo feminino. A conhecida definição freudiana de estranho, o conhecido, o familiar, que estava escondido e que subitamente vem à tona, talvez pudesse ser utilizada em um caso extremo: o alien, o estrangeiro, aquele que vem de longe, o estranho, é também o mais íntimo, o mais conhecido, o que está mais próximo, durante a gravidez. Nenhuma presença de um outro é tão próxima, íntima, quanto a proximidade do feto em gestação com o corpo materno. O feto é um estranho que habita o mais íntimo, o interior do próprio corpo. A relação da mulher com este outro é normatizada socialmente como apenas positiva, mas certamente há momentos de confusão, de estranhamento e, quiçá, de terror. No segundo filme da série, Aliens (1986), a menina compara o crescimento dos aliens nas barrigas das pessoas com o crescimento dos bebês humanos e pergunta se isso também aconteceu com sua mãe. A própria nave espacial, chamada em alguns dos filmes de “Mother”, contém em suas entranhas uma criatura estranha que não deveria estar lá. Se o estranho assusta mais quanto mais perto está, quão assustador será ter um estranho no lugar mais íntimo, dentro de si? Este horror, dado a conhecer a muitas mulheres que passaram por gravidezes traumáticas, é dado a conhecer no filme primeiro àqueles que nunca o imaginaram corporeamente: os homens. A criatura parece assustadora, antinatural, até satânica (como na semente do mal em O Bebê de Rosemary), principalmente porque “engravida” o macho: é ele quem dá à luz o alien. Seu desespero tem algo de revanche política: os movimentos feministas dizem há décadas: se os homens engravidassem, o aborto seria lei. É difícil não se lembrar disso na angustiante cena de Prometeus em que a protagonista, contaminada pela semente da criatura, horrorizada não apenas pelo perigo iminente de vida que corre com seu irrompimento pelo ventre, mas profundamente enojada por tê-lo no corpo, corre para uma máquina cirúrgica que lhe pergunta: “Qual a natureza do seu ferimento?”, ao que ela responde: “Eu preciso de uma cesária”, para receber como resposta da máquina: “Erro. Esta máquina está calibrada apenas para pacientes homens”. (Também é significativo que esta parte do diálogo não esteja no script original e tenha sido provavelmente adicionada pelo diretor). Há quase um aceno crítico sobre a proibição deste procedimento a mulheres, em uma medicina programada por e para homens. Esta cena é ainda mais dramática considerando a esterilidade da personagem informada no início da história e o mote principal do filme sendo a busca pela origem da vida - que se descobre, não vem de uma benévola figura materna, mas da figura aterrorizadora dos “engenheiros”, os primeiros pais da espécie que ameaçam - como de costume - destruir dos filhos.
Mas a recusa desta estranha maternidade também encontra sua inversão em alguns momentos. A protagonista Ellen Ripley, que perdeu sua filha devido aos acontecimentos do primeiro filme, é forçada no segundo a lidar novamente com as criaturas e vê nelas inimigas que ameaçam não apenas sua própria vida, mas também a da menina abandonada que a tripulação encontra na base. Esta tripulação é a antítese masculina de Ripley: soldados, ainda que haja mulheres entre eles, masculinizados dentro da mais, literalmente, escrota cultura militar: impulsivos e violentos movidos por medo e prazer. Ripley, por outro lado, é precavida e sempre defende o cumprimento dos protocolos de segurança, seguidamente violados pela ação masculina e causa principal das tragédias. É ela quem recorre à violência apenas quando necessário para sobreviver, salvar a Terra ou, no caso do segundo filme, para proteger a menina. Seria uma reprodução da narrativa clássica da mãe ganso não fosse a inversão também no outro lado: a figura principal dos aliens não é mais o predador, mas a mãe de todos os aliens, que luta com Ripley para protegê-los da destruição humana. Trata-se de uma batalha materna interespécies: de um lado, a potencia natural e instintiva da mãe dos aliens; de outro, a estrategista Ripley com sua força tecnicamente aumentada por uma empilhadeira. Opõem-se nesta cena final eletrizante diversos temas dos filmes, como vértebras cruzadas sobre a coluna vertical da maternidade: natureza e técnica, feminino e masculino, proteção e agressão, interno e externo, conhecido e desconhecido. No quarto filme da série, Alien: Ressurection (1997), a versão clone-híbrida de Ripley consegue destruir a criatura apenas ao usar estrategicamente a afeição materna que ele lhe destinava. Manifestações variadas, portanto, do devir-materno em relação às suas crias: horror, proteção, trauma, luto. Esta essencialismo binário entre o masculino e o feminino, a criadora e a criatura, encontra mais uma versão para além do naturalismo na figura sempre presente do androide à bordo das diversas naves. Se o alien é uma natureza descontrolada que se relaciona ameaçadoramente com o humano, o androide é o mesmo, sendo criação humana. (As empresas surgem nos filmes sempre tentando domar esta natureza ferina para instrumentalizá-los em forma de arma, ou seja, transformá-los em mera técnica, como os androides). O androide compartilha ainda com o alien o segredo do seu terror: a intimidade. Criação dos humanos, ele se torna vilão súbito, seguindo os interesses das empresas na Terra, disposto a eliminar todos os humanos da nave para retornar em segurança com a arma biológica. De servo à monstro, de íntimo a estrangeiro, de criatura a destruidor do criador. Contra o alien natural que vem de fora para dentro e contra o androide artificial que vai de dentro para fora a figura da mulher, mestra das travessias.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Monumento ao homem branco




Estreou dia 26 de abril no 67º Salão de Abril em Fortaleza a obra “Monumento ao homem branco” da terra coletiva, composta por Aline Furtado e Camila Melchior. A obra se manifesta em dois momentos que se misturam: um material e outro performático. Materialmente, trata-se de dois quadrados de papelão colados no chão de onde parte uma linha reta de cinco metros coberta por 70 garrafas de Pinho Sol. No quadrado da esquerda está parte do nome da obra em letras grandes seguido de um trecho do relatório técnico da Polícia Civil e um comentário sobre a prisão de Rafael Braga Vieira: “Em 20 de junho de 2013, Rafael Braga Vieira foi preso por carregar materiais de limpeza. Um frasco de pinho sol como estes, e outro de água sanitária. Foi o único condenado pelas manifestações de 2013, apesar de não ter participado dos protestos. Ele foi detido por dois policiais quando saia com duas garrafas de plástico do local onde morava. (...) Diferentemente dos manifestantes brancos que foram detidos nas manifestações, Rafael não pôde sequer responder ao processo em liberdade. Racismo de Estado? Ele foi mantido encarcerado no presídio de Bangu durante 2 anos e 4 meses por portar material explosivo, que na verdade, não era explosivo, como atesta o laudo da própria Polícia”. No quadrado da direita está a continuação do título junto com as seguintes instruções ao, até este momento, fruidor da obra: “Retire um dos frascos de Pinho Sol e leve consigo; Saia do MAC; Atravesse a praça em frente ao dragão do mar, dirigindo-se até o Posto Policial - Ceará Pacífico; Entregue o artefato; Observe como funciona”. Daí em diante a parte material da obra convida para sua parte performativa. Instruída sobre a história da prisão de Rafael Braga, a fruidora tem a escolha de submeter-se a um risco: o de entender “como funciona” a tripla relação entre o “artefato” Pinho Sol, seu portador e a polícia.
A obra deixa o círculo mágico-institucional do espaço artístico (onde toda rebeldia é permitida, contanto que não gere consequências do lado de fora) rumo ao espaço exterior, controlado pelo tipo social que dá nome a obra, o homem branco, através da instituição que produziu o tema da obra: a polícia que prendeu ilegitimamente o negro Rafael Braga. Mas a garrafa de Pinho Sol e seu portador, ambos performando a obra, trazem consigo o espaço artístico e operam uma segunda transformação: instauram dentro do espaço social externo um espaço artístico. Ao entregar o Pinho Sol para os policiais (como mostra o vídeo do link), o museu vai à policia, desta vez sem círculo de proteção. (Já na noite de estreia da obra, incomodados com as diversas garrafas de Pinho Sol que foram levadas até o posto, policiais invadiram o Museu questionando a autoria da obra e performando o maior elogio que uma obra pode receber do estado: ser censurada. Quando o museu vai à polícia a polícia vai ao museu!). A infinitude de consequências que podem advir desta performance cabem todas dentro da orientação final: “observe como funciona”. Embora os resultados possam ser dos mais variados, os critérios que os determinarão são poucos e específicos: raça e classe, como indicado logo de início pela obra material. Ser bem tratado pelos policiais ao entregar o Pinho Sol, sendo um homem de classe alta e branca, frequentador de museus, não contradiz a obra, pelo contrário, a reforça; da mesma forma que ser mal tratado ao portar o artefato sendo um jovem morador de rua negro, como os muitos que moram nos arredores do museu. Estão contidas nas possibilidades da obra um mínimo, que nada te aconteça; e um máximo, que você encontre o mesmo destino de Rafael Braga: a violência e o encarceramento. O tema social dá origem a obra que tem o potencial de produzir – não apenas como repetição sintomática, mas como repetição crítica, denunciadora – um novo tema social.
Dizendo o mínimo, portanto, a obra ensina muito sobre o funcionamento das relações na sociedade brasileira da maneira mais pedagógica e menos impositiva possível: a partir da própria experiência do privilégio ou da falta dele.  A dificuldade que muitos têm de identificar os próprios privilégios em nossa sociedade talvez possa ser superada com uma ideia de privilégio não apenas como algo a mais que se ganha em relação aos outros, mas como não perder, não ser perturbado, não ser violentado, em um contexto em que a maioria é. O “Monumento ao homem branco” mostra, entre outras coisas, que algo tão banal quanto carregar um Pinho Sol pela cidade sem ser importunado é um privilégio. A sequência destes aprendizados com a retirada das garrafas de Pinho Sol de cima da linha, ou seja, a ação coletiva sobre a obra a partir da obra, revela ainda um grito que estava soterrado. Este grito poético, versos de um poema que compõe a obra chamado "Pretx Eloquente", ao aparecer no espaço até então ocupado pelas garrafas, mostra que há uma voz que fala e que sempre falou, mas que está abafada. Ações coletivas, a partir da percepção dos próprios privilégios e de sua recusa ativa, têm o poder de liberá-la, assim como, quem sabe, o envio de garrafas de Pinho Sol a todas as delegacias de polícia do Brasil ajudem a libertar Rafael Braga e tantos outros como ele.