terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A câmera, a geração e o bebê de Rosemary


A panorâmica cena de abertura de “O Bebê de Rosemary” (1968), clássico de Roman Polanski, parece adiantar de maneira velada toda a história que se desenrolará: a câmera faz uma viagem ampla por prédios modernos avizinhados do Central Park em Nova York até parar, não sem alguma surpresa, em um prédio antigo e escuro de estilo gótico, que apesar de se mostrar bem acomodado no cenário da cidade, parece conter algum mistério. A cena seguinte mostra com aparentemente banalidade um jovem casal que visita um apartamento em busca de nova moradia. A caracterização deste casal é relevante para o roteiro, pois assim como na tragédia grega, a piedade ou a empatia que a espectadora* sentirá pela protagonista é proporcional ao terror que eles vivenciarão através dela. Rosemary e Guy são apresentados como o perfeito casal jovem americano que está no início do casamento em busca de sucesso profissional (vide o jargão de Rosemary sobre o trabalho do marido) e de estabelecimento familiar. São sexualmente ativos, se tratam como carinho e tem como desejo principal – ou pelo menos, Rosemary – um filho. Também a presença do casal Marcato no enredo se dá de maneira estratégica para a produção do efeito desejado: são velhos vizinhos simpáticos, que vestem extravagantes roupas coloridas e que se adiantam em oferecer todo tipo de favores. Seu primeiro surgimento, como que para apaziguar a desconfiada espectadora, se dá não presencialmente, mas através do discurso da ex-moradora de rua Terry Gionoffrio, que se desfaz em elogios ao bondoso casal que a acolheu. Também aqui um elemento clássico da construção narrativa se faz marcar: reforçar a aparência boa dos vilões aumenta a carga dramática do reconhecimento (para usar outro termo da poética aristotélica) no fim da história: a revelação de seu caráter verdadeiro.
O enredo é composto de forma a colocar em dúvida não apenas a protagonista Rosemary, mas com ela a própria espectadora. Nenhuma delas consegue se decidir entre o que é real e o que é imaginado. Logo após a metade do filme, quando a tensão já se instaurou, Polanski joga sadicamente com suas expectativas: a cena da ligação desesperada na cabine telefônica é cruelmente prolongada de maneira para que fiquemos tão tensos quanto a própria Rosemary. Ao invés de simplesmente falar com o doutor e se dirigir a seu consultório, ela tem de falar com a secretária, pedir para retornar a ligação, para que esta ainda antes do doutor questione os motivos, para aí sim, após uma pequena discussão sobre os horários, Rosemary combine sua ida ao consultório. Durante estas pequenas ações, quase vazias, mas extremamente importantes do ponto de vista da construção da tensão, Polanski nos coloca em um estado de pânico e paranóia semelhante ao da protagonista. Estado fundamental para que o filme instaure o espaço fundamental para o terror sobrenatural: aquele da soleira, limítrofe, entre o real (racional e seguro) e o imaginário (irracional e periogoso). Enquanto Rosemary espera o retorno da ligação, vemos antes dela mesma a aproximação de um senhor que se coloca de costas diante da porta da cabine. Nos desesperamos, claustrofóbicos, com a heroína, até que o homem se vira e nos envergonhamos pelo desespero exagerado: tratava-se apenas de um homem querendo usar o telefone. Esta cena é emblemática do domínio que Polanski tem, não apenas do grande enredo, mas das pequenas cenas e ambientações que produzem o efeitos desejado por ele.
Do ponto de vista do enredo, o filme é construído de forma que no momento da decisão sobre uma questão específica, sua resposta acaba por gerar outra pergunta, e assim indefinidamente. A espectadora é arrastada em um turbilhão por vezes se angustiando com as mesmas questões de Rosemary, por vezes se angustiando pelas próprias ações. Ela que, assim como os personagens do filme, não acredita em bruxas, não consegue se decidir entre compartilhar das impressões de Rosemary ou duvidar de sua sanidade mental (“Prepartum hysteria”, diz o doutor Saperstein). (É interessante notar como é somente a crença dos personagens, e da própria espectadora, na não existência de bruxas que permite que elas ajam livremente. Como se a negação de algo que escapa ao discurso racional permitisse que ele agisse ainda mais fortemente... ). Também a posição de Guy é ambígua pelo menos até a metade do filme. Mesmo no final, não se pode saber com certeza quando é que ele fez o pacto com a seita. Uma das suposições é de que ele se dá na primeira reunião na casa dos Castevet. A câmera neste momento não aponta para Rosemary nem surge de suas costas, mas das costas do próprio Guy. É ele quem observa atentamente o desenrolar dos assuntos e a gentileza do casal de velhinhos. (Poderíamos pensar, já que não se pode ver a reação de Guy, que é também a espectadora quem se coloca, em alguma medida, no papel de decidir sobre a realização do pacto, da entrega do filho em busca de sucesso profissional). Numa das cenas posteriores, Rosemary conversa com Minnie visivelmente incomodada, enquanto da conversa de Guy e Roman a câmera mostra apenas uma parte da sala, exoticamente cheia da fumaça de cigarros dos dois que permanecem ocultos. Esta cena, que remete a caldeirões cozinhando feitiços, é talvez a primeira insinuação de algo extraordinário na relação de Guy com os Castevet. Por outro lado, devemos pensar na irônica profissão de Guy: ele é um ator. É possível, portanto, que desde antes da visita ao prédio já tivesse ele realizado o pacto com os bruxos. Também a sarcástica afirmação de Minnie no final do filme faz pensar que talvez mesmo antes da visita ao prédio o plano já estava em movimento: “Ele escolheu você entre o mundo todo, Rosemary. De todas as mulheres do mundo inteiro, Ele escolheu você. Ele organizou tudo porque Ele queria que você fosse a mãe do Seu único Filho”.
Este dilema se mantém até os últimos momentos do filme quando Rosemary exige que Guy lhe mostre seu ombro, buscando algum tipo de cicatriz da seita. Não encontrando, surpreende-se a espectadora por ter estado durante a maior parte do filme do lado da suposta louca e não do marido fiel e preocupado. A ambigüidade prossegue até depois da descoberta da realidade do complô e se transfere para a própria questão mística: embora o complô tenha se mostrado verdadeiro, são os Castevet e a seita realmente bruxos, ou apenas membros lunáticos da alta sociedade? A dúvida final é a própria aparência da criança. A espectadora acompanha tenso os passos de Rosemary na dúvida sobre a existência do sobrenatural. O grito horrorizado de Rosemary lança ainda dúvida: “O que você fez com ele? O que você fez com os olhos deles?”. Como se o sobrenatural fosse tão impossível de acreditar, que a possibilidade de alguma cirurgia ou operação nos olhos da criança parecesse mais natural. É apenas na fala fatídica de Roman que a dúvida sobre a realidade da criatura se resolve. A espectadora se encontra, neste momento, tão cansada e abalada quanto Rosemary. O filme aparentemente se resolve, até o crescente desespero da protagonista que traz a última, e talvez mais importante das questões: como exercer a maternidade em contexto tão extraordinário? A conclusão do filme sugere uma resposta, mas mantém a questão em aberto – apresentando, talvez de maneira alegórica, a questão principal de seu momento histórico.
Para criar e nos manter nesta tensão tão plural e constante, Polanski compõe o filme em uma espécie de gênero híbrido. O Bebê de Rosemary não faz parte apenas do gênero do suspense, aquele em que alguma situação misteriosa é mantida em suspensão até sua resolução no final, mas também do gênero policial, em que pequenos acontecimentos sem explicação (como o desaparecimento da luva de Hutch ou o estranho posicionamento do armário no começo do filme) se reúnem harmonicamente no final do filme ao mesmo tempo esclarecendo os acontecimentos do passado e revelando elementos no presente do filme: o crime e os criminosos. Rosemary Woodhouse não se apresenta apenas como a vítima inocente, mas também como uma mulher ativa, detetivesca, que na segunda parte do filme passa a recolher pistas em busca do complô do qual se sente alvo. O interessante, e talvez mais original em relação a O Bebê de Rosemary, é que depois de descobertos os criminosos, não recai sobre eles a punição redentora (como no caso de um romance de Sherlock Holmes), mas a própria protagonista, por motivos extraordinários, passa a compor o grupo de criminosos. Esta conclusão ambígua é, aliás, o maior ponto de contato entre o filme e o contexto do Maio de 1968.
A idéia de uma maternidade que dá a luz a algo de completamente distinto, e negativo, poderia ser pensada como metáfora para o conflito de gerações do momento. Mesmo o tratamento que o filme dá ao tema da religião, apresentando-a como mero espetáculo (Guy afirma sobre a visita do Papa: “Bem, isto é showbiz”), como dúvida (Rosemary afirma sobre sua posição religiosa: “Eu fui criada como católica... Agora, eu não sei”) e até re-afirmando a morte de Deus, é também parte de um sentimento de questionamento da tradição sobre o qual se embasa o sistema social. Como se o filho de Rosemary, este Cristo negativo, que apenas com sua presença é capaz de aumentar a temperatura em toda a cidade, representasse uma juventude com o poder radical de abalar o mundo estabelecido. A descrição que Roman faz do futuro de Adrian é sintomática: “Satan é Seu Pai e Seu Nome é Adrian! Ele deverá derrubar todos os poderosos e reduzir às cinzas os seus templos! Ele deverá redimir os desprezados e se vingar em nomes dos queimados e torturados! Viva Adrian!”.
Não se trata então apenas de uma querela teológica, mas de uma vingança baseada num desejo de justiça, de “redenção dos desprezados”, de vingança dos queimados e torturados (contra o próprio Deus, podemos imaginar, mas também contra um certo sistema social). Se não há uma relação direta com os fatos políticos, podemos ver, no entanto, a expressão de um certo espírito do tempo, do desejo radical de transformação. Quanto à negatividade que o filme expressa como possível origem desta transformação, não seria a primeira vez na história da arte que a imagem de Satã, ou de demônios, estaria associada à algum tipo de revolução ou a ideais de libertação (basta pensar na literatura de Baudelaire ou no próprio conceito de dionisíaco).
Do ponto de vista da composição visual no filme, observa-se que a própria organização das câmeras, o tipo de close e de cenas contínuas contribuem completamente para o efeito de tensão constante que o diretor deseja causar. É praticamente impossível encontrar no filme cenas em que a câmera esteja paralela ao chão. Na maior parte das vezes há uma ligeira inclinação, de baixo para cima, de forma que a sensação de estranhamento e opressão é constante. Observamos o desenrolar das ações como que colocados abaixo dos personagens, submissos, assim como Rosemary, às suas ações. A frágil aparência dos membros da seita é delicadamente traída por esta estranha angulação das câmeras, como aquele narrador dos romances policiais que nos avisa aos poucos, sem revelar o mistério. Além desta leve inclinação, a escolha dos pontos a serem focados também é digna de consideração. Em vários momentos a câmera se movimenta, da esquerda para a direita, mostrando não o rosto dos personagens como era de se esperar, mas seu tronco. Os olhos dos personagens desaparecem – e este movimento é mais costumeiro em relação aos membros da seita (como se nos olhassem em segredo...) Novamente, ficamos à mercê de suas secretas intenções, da mesma maneira que Rosemary. A quase falta de closes também pode ser entendida como um elemento na composição dramática do filme. Ela, ao mesmo tempo que nos coloca em um local de falsa confiança, também ressalta a dramaticidade das cenas em que aparece. Os poucos closes servem para ressaltar, seja de maneira discreta, seja de maneira impactante, os gestos e falas dos personagens. A cena em que Rosemary revela ao doutor Sapirstein sua teoria da conspiração é um exemplo deste narrador que nos dá pistas pouco óbvias. A câmera dá um close na reação de Sapirstein de forma que podemos conhecer um certo nível de interpretação em sua reação; é a câmera nos antecipando em segredo os acontecimentos futuros. Outra cena em que a câmera se utiliza do raro close é a revelação final do satanismo de Roman Castevet em que Satã é louvado e o rosto do personagem domina a imagem. É das primeiras vezes que vemos seu rosto tão de perto, como se nesta aparição surgisse pela primeira vez sua verdadeira imagem.
Por fim, O Bebê de Rosemary mostra uma íntima relação entre a maneira com que apresenta sua história e seu enredo. Este é construído em seus mínimos elementos dando ao todo uma coerência que se estende até o nível da câmera. O nome Rosemary, por exemplo, contém o nome de Maria, mãe de Jesus. Há uma cena em que a relação entre as duas maternidades, a sagrada e a profana, é irônica, e discretamente, apresentada. Rosemary, que aguarda em vão a vinda de Hutch, se distrai observando uma vitrine que, para a surpresa da espectadora, contém justamente uma montagem do presépio cristão. Polanski lança a imagem do rosto de Rosemary na vitrine de forma que ambas as mães se encontrem de maneira simbólica na cena. Este parece ser um bom exemplo sobre como as menores partes do filme se referem à totalidade do enredo, sem no entanto, revelá-lo de todo.

* O blog 3 Parágrafos de Crítica é rebelde com a língua portuguesa. A tradição recomenda o uso do masculino para plurais e singulares genéricos e/ou neutros, como seria o caso de “o espectador” neste texto. Como não há neutralidade possível, optamos por substituir o masculino “neutro” por um feminino “neutro” (esta opção não tem nenhuma relação específica com o filme analisado). O estranhamento causado por um feminino neutro já mostra que a neutralidade do primeiro é falsa. Desfrutemos do estranhamento.   

** Este texto é a adaptação de um texto antigo.  

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Pasolini e o fechamento das escolas

 
(Anne Wiazemsky, como Odetta, em Teorema, de Pier Paolo Pasolini)
 

Se a ideia tradicional de aluno pressupõe seu complementar oposto, o professor, então seria natural esperar de cada aluno o desejo incendiário de fechar o espaço em que se desenrola esta transferência unidirecional de “saberes”: a escola. O professor como o técnico que insere nas mentes dos alunos, sujeitos esvaziados, incapazes de interagir, responder ou questionar, certos saberes. Saberes, não aqueles originados das questões específicas dos que os buscam, mas aqueles pré-definidos pelo Estado e seu dono, o mercado, aqueles úteis, genéricos, aplicáveis e funcionais a um certo interesse “geral”. A literatura brasileira conhece bem este desejo nas inspiradoras páginas finais de O Ateneu, de 1888, em que a escola é colocada abaixo num incêndio criminoso causado por um aluno. A literatura, nesse fim de século, vira-se contra si mesma produzindo um argumento em que se vê como justificada a destruição de uma de suas instituições de sustentação mais importantes. Mas o Brasil contemporâneo, vanguarda do inesperado, consegue produzir contradições sociais com tamanha velocidade e intensidade que somos surpreendidos com manifestações e ocupações simultâneas em todo o estado de São Paulo de alunos que exigem justamente o contrário: o não fechamento das escolas.
    Em um artigo para o jornal de 1975, o cineasta e escritor italiano Pier Paolo Pasolini trata do problema da violência juvenil na Itália e associa sua origem a um “ambiente de criminalidade de massa” gerado pela “perda por parte dos jovens dos próprios valores morais, isto é, da sua própria cultura particularista com seus esquemas de comportamento, etc”. A alienação da própria cultura seria efeito de uma modernização incompleta pela qual passava a Itália (e, aliás, toda a periferia do Capitalismo, Brasil incluso) em que nem os velhos valores foram completamente perdidos, nem os novos valores adquiridos com sucesso. Para resolver esta alienação que confundia a juventude sobre sua “própria função”, Pasolini faz “propostas swiftianas” de abolição, atacando as instituições que mais fomentavam este processo: a escola e a televisão. Cínico em relação a propostas de “autogestão” e “descentralização”, para ele a escola seria mero espaço de “iniciação à qualidade de vida pequeno-burguesa”, onde se ensinam apenas coisas estúpidas e moralistas que não teriam como função oferecer um futuro a partir da própria cultura, mas “criar um pequeno-burguês escravo em lugar de um proletário ou sub-proletário livre”. Se é assim, o fechamento da escola surge como um argumento levado às últimas consequências, um travamento da máquina modernizadora que possibilitaria, talvez, o ressurgimento de uma cultura jovem legítima, não alienada pelos modelos televisivos e burgueses, mas preocupada com sua realidade específica. Em uma nota de rodapé, Freud comenta os sistemas educacionais em uma referência quase profética ao texto de Pasolini: “Ao lançar os jovens na vida com uma orientação psicológica tão incorreta, a educação procede como se munisse com roupas de verão e mapas dos lagos do norte da Itália pessoas que farão uma expedição polar”.
O desejo dos alunos, em 2015 e em São Paulo, não é de manutenção. Menos ainda de uma destruição estéril, privilégio de herdeiros como os personagens do Ateneu, ou, em certo sentido, de uma exigência intelectual como a de Pasolini. Trata-se de uma interrupção. O impedimento do fechamento quer impedir que a escola continue sendo o que é. Os alunos conhecem o objetivo do projeto de educação do estado de São Paulo: produzir mão de obra, qualificada ou barata, dependendo do CEP, dentro do mesmíssimo programa denunciado por Pasolini na Itália de 70. Quaisquer outros objetivos pedagógicos amplos como o desenvolvimento das potencialidades de cada estudante, a ampliação de seus horizontes de percepção, a formação de sujeitos críticos e conscientes da especificidade de seu pertencimento cultural, quaisquer objetivos, ainda que reduzidos por uma visão estatal, como a formação de cidadãos atentos aos acordos sociais, etc, são drasticamente reduzidos à tarefa dupla de produzir produtores e consumidores. A reestruturação escolar, com seu caráter declaradamente privatista, não é uma redução, mas uma intensificação, talvez o passo último, deste projeto pedagógico. Contra esta continuidade é que estão as ocupações das escolas. Elas podem ser compreendidas à luz da dialética da destruição criadora: impedir o fechamento, travando a concepção pedagógica do aburguesamento, para que seja possível uma abertura. Por isto, os alunos prometem manter as ocupações “até o fim”: o fim desta escola a fim de abrir o espaço para a outra. 

* Agradeço muito pela ajuda neste texto às queridas Betânia e Patrícia.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Jessica Jones: de mulher para mulher?



Como escrever sobre um seriado de grande projeção criado e protagonizado por mulheres sem reduzi-lo exclusivamente a esta feliz excepcionalidade? Um dos problemas da sub-representação de grupos na produção cultural é sua típica redução na recepção. Como se Jessica Jones falasse apenas de e para mulheres. A amplitude das questões sobre as quais obras assim tratam é de antemão limitada ao grupo social do qual seus produtores - ou seu público-(não-)alvo - fazem parte. O mesmo não se dá com obras-padrão, produzidas por grupos super-representados, privilegiados que, embora sejam numericamente minorias (o famoso 1%, em tantos aspectos), falam e são escutados como representantes da maioria. Assim, no mundo dos super-heróis Super-Homem e Homem-Aranha, embora tenham sido produzidos pelo mesmo perfil que encarnam, estadunidenses masculinos e brancos, são recebidos como representantes universais das aspirações de todas as pessoas quando superam seus dilemas e traumas pessoais ou se sacrificam em prol do bem comum, enquanto a Mulher Maravilha ou a Spider Gwen são tomadas como representantes das mulheres e das questões e aspirações específicas das mulheres. O mesmo acontece com negros, LGBTs e outros grupos comumente tomados como “minorias”. O exemplo mais recente deste fenômeno é Sam Wilson, o herói negro que se tornou o novo Capitão América no mundo dos quadrinhos Marvel. Tanto na recepção interna da obra, pela população estadunidense fictícia que não se reconhece mais no herói, quanto na recepção crítica externa à obra, o Capitão América deixou de ser o símbolo que unificava todo o país para se tornar, contraditoriamente, o representante ao mesmo tempo da minoria negra e de todo o país. Esta inadequação levanta várias hipóteses: será que o Capitão América anterior, homem branco, na verdade não representava apenas uma parte da população enquanto era falsamente tomado como representante de todos? Ou será que o problema está no ideal de nação (ou de sujeito), já não compatível com o século XXI?
Como escapar então desta redução generalizada? Se o caráter universalista das obras já não é mais possível ou, pelo menos, não é mais o exclusivo, como escapar da crítica e da recepção cultural de nichos? Como superar a redução, por exemplo, de uma obra ao seu público-(não-)alvo? Como assistir a um seriado como Jessica Jones sem reduzi-lo às típicas expectativas de um seriado de mulheres? Há afinal um universal comunicável em cada específico? No limite, o que as obras têm a dizer sobre o que eu não sou? A mudança na posição padrão daqueles que eram antes super-representados na posição de protagonistas, e agora aparecem também como coadjuvantes ou mesmo vilões, tem algo a lhes dizer? Ela diverte, emociona, faz pensar, critica? Evidentemente! O que é novidade para eles, sempre foi regra para a maioria das pessoas, os sub-representados, que sempre se relacionou com a alta cultura e a cultura de massas ou se reconhecendo em um protagonista diferente de si "universalizado" ou se identificando na sua representação tipicamente  secundarizada ou vilanizada. A possibilidade de se identificar com o outro (a mulher, o negro, x trans, etc) ensina mais do que a identificação sempre consigo mesmo. E é mais profunda. Entender seu papel social - o de companheiro em uma relação - não como o herói de sempre que salva a mocinha, mas também como o vilão que a persegue, pune e tortura é pedagógico - e realista. Esta variação é positiva e assustadora para quem esteve acostumado a se ver sempre representado de forma mais positiva do que a sua posição na sociedade realmente é. A virada representativa, que só tem crescido nas duas últimas décadas, tem em Jessica Jones uma de suas melhores representantes na indústria da cultura.  
O enredo de Jessica Jones não surpreende em sua estrutura macro: ainda é um seriado sobre uma super-heroína, felizmente com pouco uso de super efeitos especiais, aprendendo a usar seus poderes para combater um super-vilão muito mau (forçadamente e com pouca personalidade, salvo apenas pela excelente atuação de David Tennant). Nas partes mais internas do roteiro, no entanto, a série surpreende: cada parte previsível tem uma continuação inesperada. A fotografia segue a mesma dualidade: é exagerada, clichê, mas delicada e parte componente da narrativa. Mantém-se a estrutura como série, confortável para o público do Netflix e da Marvel, mas no nível dos episódios aparecem surpresas interessantes. Jessica Jones tem uma superfície de seriado de super-heróis, mas é muito mais um drama sobre a superação - o processo de resistência, libertação e cura, nunca completamente realizado - de relacionamentos abusivos. O foco é a violência psicológica de homens contra mulheres, mas não se reduz a isto. A manutenção dos papéis de dominador e dominado, e a luta, aparece na relação entre casais lésbicos, mãe e filha, filho e pai e até no nível individual, no caso da luta de viciados contra a dependência química. O seriado é pedagógico sem ser panfletário. Ao invés de um marido manipulador, que distorce informações e manipula psicologicamente sua companheira, um super-vilão com o poder de forçar as pessoas a fazerem o que ele quer. Ao invés de um romântico apaixonado, um mimado que não perdoa a mulher por não se interessar por ele (e por acender seu desejo, pecado original clássico na  liturgia do machismo). Ao invés da negação social, como no típico “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, uma alegoria: uma delegacia cheia de policiais que testemunham a agressão e segundos depois explodem em gargalhadas se esquecendo do que aconteceu. Ao invés do maníaco, um namorado atencioso, que revela o caráter secreto do primeiro no segundo. As denúncias culturais da crítica feminista, racial e pós-colonial finalmente colhem seus frutos: em nenhum momento as mulheres são salvas por homens, mas o contrário acontece. O seriado mostra o aborto justo de um feto fruto de um estupro. As mulheres não se masculinizam para vencer os homens vilões: se apoiam. A super-força de Jessica não é fálica, impositora, é criativa, irônica, protetora.  O seriado tem uma profusão realista, finalmente, de atores negros, latinos e asiáticos. E para os nerds menos tímidos: finalmente boas cenas de sexo entre pessoas com super-poderes! A graça e o interesse que o Homem-Aranha introduziu no mundo dos quadrinhos com seus pequenos problemas de adolescente, sua falta de dinheiro, seu luto interminável pelo Tio Ben, isto tudo em oposição ao invencível Super-Homem, encontra agora uma graça e um interesses semelhantes, mas ainda mais expandidos, em Jessica Jones, a mulher quase normal que luta contra o seu passado - tristemente tão reconhecível, tão identificável para tantas e tantos - que não quer ir embora.